domingo, 8 de fevereiro de 2009

Passagem da Noite


É noite. Sinto que é noite
Não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
Mas porque dentro de mim,
No fundo de mim, o grito se calou,
Fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
Que palpitamos no escuro e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento, noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada? E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo. É noite no submarino.
É noite na roça grande. É noite, não é morte,
É noite de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite, é perfeitamente a noite.
Mas salve, olhar de alegria! E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono, o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta! Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão. Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias, as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas, sinos, palavras;
Que a terra prossegue seu giro,
E o tempo não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado, o essencial é viver!

Carlos Drummond de Andrade

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